sábado, 15 de janeiro de 2011

Entre dois.

Era o último ônibus rodando da linha. Fora eu, apenas um casal sentado lá na frente. Eu estava escutando música, aos cochilos. Até que Isaac subiu, e veio dirigindo-se a mim.

- Fala, porra – disse ele.

- Opa.

- Nem sabia que tu pegavas esse ônibus. Só sabia que tu morava pra lá.

- Idem. Não é sempre que eu pego. Tá vindo de onde? – Falei já tirando os fones.

- Trabalho, fiquei até agora lá fazendo média com meu chefe.

- Ah, foi? – perguntei.

- Foi, se não, não consigo subir para gerente de vendas. Tenho que mostrar que sou de confiança e conversar política com aquele velho direitista até tarde. Por isso, to morto, desde às 8 da manhã rodando na cidade, sem um banho. Imundo e doido para chegar em casa.

- Hahaha, ele é da direita?

- Sim, que nem todos esses velhos.

- É verdade, todos são.

Isaac sempre teve uns termos divertidos. Eu o conheço desde pequeno, mas só viemos nos tornar próximos, recentemente.

- E tu, vens de onde? – Ele perguntou.

- Faculdade.

- Tá indo bem nas provas?

- Sim, graças a Deus.

- Tem certeza, que é graças a ele?

- Hahaha, não. Na verdade, ele não tem nada a ver com isso. É graças a mim, desculpe o meu vício de linguagem – Me expliquei.

- Ah bom.

- Você pensa o que sobre? – ele perguntou.

- Religião?

- É.

- Hum... sou deísta. Aceito a idéia de Deus só até o criacionismo.

- Eu sei o que é Deísmo, porra. Eu tô cansado, e não demente.

- Hahaha, desculpas, estou acostumado com incultos. Mas não é todo mundo que sabe, ora.

- E tu, crês em quê? –perguntei curioso.

- Em mim, basicamente – Nesta hora, Isaac gargalhou, e continuou falando - Sou ateu. Vindo mais puro e simples significado da palavra. Mas, não tenho nada contra a idéia de Deus. Pelo contrário, Deus faz bem às pessoas que nele crêem. Deus funciona como uma válvula de escape, tudo que não se sabe explicar, é atribuído a vontade dele. Assim, fica bem mais fácil. Quando eu não quero pensar sobre um fato, um acontecimento, Deus é o responsável. E devido a isso, essa crença tomou robustez, pois pensar é tido como algo trabalhoso. E as pessoas querem comodidade. “Porque eu tenho que pensar, se eu posso simplesmente não - pensar?” – E assim, Isaac ia se empolgando com um assunto nem sempre empolgante e, por vezes, deprimente. E continuou – Cara, tem uma frase do Richard Dawkins que eu acho fantástica, que fala exatamente sobre isso.

- Ah é? Qual frase? – já fui de gostar muito dele.

- É... deixa eu ver se lembro... “O grande ponto da fé religiosa, sua força e glória, é que ela não depende de justificativas racionais”. Hahaha, pois é, Deus faz bem as pessoas. Só não me peçam pra acreditar nessa fábula, porque pra mim é bem claro que Deus é uma invenção humana.

- Para mim também. E o que você falou faz total sentido, Deus faz mesmo bem as pessoas. Quando a fulana passar no vestibular ela dirá “Graças a Deus”, se, por acaso, dois anos depois a mãe dela morrer, ela dirá “É triste, mas tenho que aceitar a vontade de Deus”. Ou seja, ele serve mesmo de conforto, e faz bem as pessoas. Se acontecer algo muito triste na sua vida, você não poderá ter impedido, foi a vontade dele. Normalmente as pessoas continuam acreditando, até um dia que é possível que aconteçam várias merdas consecutivas na vida de uma pessoa de bem dessas, e ela venha aderir à descrença e pare de dar seu dinheiro para a industria da fé. Ah, e eu gostei da frase.

Então, mudando de assunto, Isaac falou:

- Pois é, velhos de direita são um saco.

- Já fui de contestar mais e de me envolver mais em questões políticas, hoje não – eu disse.

- Cara, eu juro que quando eu chegar ao topo do sistema, serei dono de uma organização respeitável e sem nenhum “chefe” acima de mim, eu implanterei a revolução – falou isto rindo.

E risadas foram seguidas de mais risadas.

- Como assim? Explique-se melhor – eu falei, ainda levando no tom da brincadeira.

- Cara, eu cansei. Cansei de ser mais um nessa merda. Bater de frente agora, não adiantará de nada, por isso que eu vou subir. Subir muito, até ter poder suficiente pra bater de frente lá de cima. Porque eu já to muito puto com isso tudo.

Eu confesso que à vezes, eu não conseguia distinguir quando Isaac falava sério ou não, mas, eu já estava começando a crer que daquela vez sim. E perguntei:

- Como assim, o que tá te deixando puto?

- Essas merdas de vidas. As pessoas chegam em casa hoje sempre estressadas, apressadas, ninguém tem tempo para nada, nem para si. A onda dos produtos agora, é toda adaptada à praticidade, eles querem vender tempo. Xampu 2 em 1, macarrão instantâneo, lasanha pré-cozida, pizza e sanduiche de microondas. Teremos um momento na sociedade, bem no futuro, que o que você vai ingerir serão apenas cápsulas com os nutrientes necessários para o seu corpo funcionar, para que você não perca tempo comendo e só vá ao vaso sanitário semanalmente. Então, serão cápsulas de várias qualidades e marcas, você se alimentará basicamente delas, e seu estômago será do tamanho de um limão. Me entenda, eu gosto de praticidade, o que eu não gosto e dela ter ser tornado a tônica do nosso consumo.

- Putz, talvez eu nunca tenha pensado tão a fundo sobre. Mas, eu acho que não me incomoda tanto assim, são as evoluções da industria, cara.

- Eu sei, porém, todas elas acontecem para que possamos economizar tempo. Afinal, Time is Money, no nosso querido amigo capitalismo. Percebeu o que eu falei? “Economizar” tempo. Percebeu como esses valores já estão agregados a nós? Nós hoje, nos tornamos tão escravos do consumo, que o que todo adulto quer hoje é uma TV com 300 canais e um carro que passe as machas por ele. Só isso.

- É, já dirigi um desses. Câmbio automático é uma merda – concordei com humor e um tom de quem não quer mais conversar sobre. Isaac era louco.

- Pois é, praticidade é bom, mas, as coisas têm se tornado tão práticas que esquecemos o prazer que elas nos trás. Eu não quero que a humanidade daqui a 200 anos se alimente de cápsulas, entende? Comer é bom. Eu posso perder o tempo que for, mas comer continua sendo bom e fazendo parte momentos felizes do meu dia. Assim como passar as marchas de um carro.

Então, por algum tempo, os dois ficaram calados. Tornei os fones aos ouvidos. As ruas desertas da noite iam passando, um ou outro carro, raramente pessoas andavam. Sinais fechavam e abriam e minhas músicas iam mudando. Isaac tinha fechado os olhos, parecia estar realmente cansado, escorando a cabeça no encosto das cadeiras hiper confortáveis de ônibus urbanos. Assim mesmo, perguntou:

- Alguma nova garota?

- Por incrível que pareça, dessa vez sim – respondi.

- Que milagre, você com alguém. Quem é? – ele abriu os olhos.

- Você não a conhece.

- Como ela é?

- Ah... ela é cheirosa, tem uns passos curtos e um sorriso notável - Por vezes, parecia que eu usava as palavras como se fossem em um texto, entretanto, sendo as comuns falas cotidianas.

Então, o silêncio reinou por alguns minutos e Isaac o interrompeu:

- Vou descer, abraço aí.

- Afinal, onde você mora mesmo, em? – Perguntei.

- Terceira casa depois da padaria. E tu, mora onde?

- Ah, entendi. Eu moro no prédio da esquina, logo quando o motorista for dobrar à esquerda. Ei, tu vais sábado ao clube?

- 12?

- É.

- Óbvio, hahaha. Sim, tenho que ir descendo, tenta ir combinando com o Leandro. Até sábado.

- Até.

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