terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Amnésia




Hoje eu acordei com dor de cabeça, tomei banho, lanchei, me vesti, tive que pegar uns papéis e acabei esquecendo de tomar o remédio para minha dor.
Eu saí de casa apressado e, quando estava descendo as escadas, bati com a cabeça no portão, e a dor me deixou uma raiva. Só que, dois minutos depois, por conta da correria do dia-a-dia, eu havia esquecido. Simplesmente esqueci. Minha raiva se reduziu a nada. Esqueci muitas outras coisas, mas é impossível lembrar tudo que eu esqueci. Lembrar é bem mais difícil que esquecer.
Tenho que escrever este texto porque estou realmente preocupado com minha mente. Comecei a perceber que esqueço várias coisas todos os dias. Coisas que minha mente simplesmente deleta. Mas o pior é que minha mente passou a deletar coisas importantes também. Ou ela já fazia isso, e eu só fui perceber agora, não sei. Mas minha mente faz parte de mim. Ou melhor, eu sou minha mente. Então, ela deveria saber o que é importante e o que não é. Será que agora tudo em minha vida virou importante? Porque, se for, ela pode estar se atrapalhando para memorizar tudo que eu preciso. Mas, pode ser que agora nada mais seja importante, e ela nem se esforce para memorizar.
Comecei a esquecer tarefas do dia-a-dia, nomes de pessoas, filmes e livros que tenho que comprar, e coisas do tipo. Será que eu sempre esqueci esse tipo de coisa? Com memórias antigas eu sou ótimo, perco poucas. Eu acho que sofro algum problema mental, talvez uma séria amnésia. E se eu sofrer esse problema, será que minha mente sabe? Cada um domina sua mente? Ou a mente que domina cada um? Ou são realmente a mesma coisa?
Ah, não sei mais de nada.
Eu tinha até memorizado um final bem reflexivo para esse texto, mas esse final, eu esqueci.



Lucas Xavier de melo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Memorial


Sem dúvida, os melhores momentos que eu passei ao seu lado foram na praia de Morro Branco, onde tínhamos uma casa. A casa era o divertimento de grande parte da família. Os finais de semana e feriados normalmente eram lá. Toda manhã íamos à praia, ele brincava com seus netos na própria areia. Ele adorava deitar lá. Agradeço por ter tido o privilégio de ter sido um desses netos. Nos cafés das manhãs ele satisfazia a vontade dos netos, sempre tínhamos tudo que queríamos. Suco, queijo, pão e tudo que fosse necessário ele mandava preparar. Quando chegávamos da praia, ele mandava por na mesa um bom peixe frito. Cuscuz de milho, inhame e jerimum estavam entre seus pratos prediletos, além do famoso bacalhau feito por minha avó. Toda a família gostava.
Os dominós tomavam conta das noites, acompanhados de cerveja e tira-gosto. Cartas de baralho não ficavam de lado, sendo ele um mestre nas duas atividades.
Era um homem de diversas virtudes. Confesso que ele tinha um certo caráter rude e conhecimentos limitados. Mas a experiência vital lhe tornava um sábio. Tinha uma enorme autoridade familiar, ganhou o apelido de “chefe”. E de fato era um, mandava e desmandava em toda casa. Na cozinha, ele freqüentemente trocava patadas com minha avó. Quando ele estava lá, os dois não sossegavam.
Em certa época de minha vida, ele me ligava todo dia, só para me acordar. O despertador inútil não conseguia fazer isso com eficiência. Já o telefone era bem mais alto e servia bem para a função. Como ele acordava cedo, não se incomodava de me ligar. Na primeira semana, ainda trocava algumas palavras com ele, mas depois disso, o diálogo passou a ser quase sempre o mesmo:
- Opa, obrigado vô, tchau.
- Por nada meu filho, boa aula. Tchau.
Por mais banal que esse diálogo possa parecer, era bom porque me sentia mais próximo dele.
Ele adorava festas e encontros familiares, exagerava um pouco no álcool. Teve um sério problema com a bebida, o qual viria a parar mais tarde. Era um homem alto, presença forte, eu o conheci de cabelos brancos, tinha também olhos azuis e uma gargalhada sem igual. Seu humor contagiava a todos, era de fato um homem feliz. Sempre que eu chegava em sua casa, não conseguia fazer outra coisa antes de falar com ele e com minha avó. Com certeza, os dois tiveram parte em minha educação.
Poucos anos depois de vender a casa de praia, vieram crises de saúde, principalmente, em virtude da bebida. Seu fígado foi atingido. Em um intervalo entre essas crises, comemoram-se bodas de ouro do casamento entre ele e minha avó. Pouquíssimo tempo depois caiu em outra crise, quando não estava em hospital, ficava todo o seu tempo na cama de casa.
Com a ajuda da fisioterapia, para nossa surpresa, ele voltou a andar. Sinal de que não desistiu fácil. Nessa época, ele fazia bicicleta assistindo televisão, estava em ótima forma. Eu realmente acreditei que tudo tivesse passado.
Mas pouco depois, ele voltou a piorar, seu quarto já era um pequeno hospital improvisado. Além da cama especial, viam-se aparelhos de respiração e itens hospitalares. Tudo foi piorando, depois de um tempo, nem sequer ligava a televisão. Nas ultimas semanas, não sorria e falava apenas o necessário. Sempre que eu entrava naquele quarto, sentia um cheiro frio de tristeza, que provocava ardor no peito. O olhar antes feliz e contagiante era agora completamente vazio e sem sentimento.
Uns três dias antes de partir, ele teve um mal estar forte, foi ao hospital, mas logo voltou, não havia nada a se fazer. Conta-se que na madrugada do dia final, ele passava muito mal e gritava sem parar. Ao dia, já mais calmo, com certeza ele sabia que não ia passar dali. Avisou com um certa antecedência e esperou uma última pessoa. Deu o último suspiro e morreu aos braços de sua filha.
Recebi a notícia por telefone. Tranquei-me no banheiro e entrei debaixo d'água. Junto a água que escorria pelo meu rosto, desceram duas ou três lágrimas, apenas. Não consegui chorar mais que aquilo. As reflexões eram tantas, que parecia que ainda não tinha “caído a ficha”. Fui chorar mais no velório e mais ainda no enterro no momento em que o caixão descia.
A dor maior era saber que eu nunca mais o veria.
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Nota do autor.
(Que fique claro que minha intenção nesse texto nunca foi que ele fosse triste, ou qualquer outra coisa que ele possa parecer. Esse texto é completamente real e freqüentemente atualizado, sempre que lembro de algum fato antigo, ou alguma coisa importante que lembre meu avô. Basta que essa coisa ainda não tenha sido escrita aqui. Faço isso pelo simples fato de não querer perder minhas lembranças.
E eu não quero que minha visão dele seja sempre cada vez menor. Não quero ser um adulto que não lembre o suficiente das pessoas que marcaram minha vida. E essas são, definitivamente, memórias que eu não quero perder.)


A primeira versão do texto foi escrita na madrugada de uma terça-feira, 7 de outubro de 2008 – 12:49 am.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Procuram-se heróis.

Poucos percebem toda esta situação, menor ainda, é o número de pessoas que querem mudá-la. Poucos conseguem abrir os olhos e perceber e criticar todo o sistema. Pior que isso, é uma minoria insignificante que quer mudá-lo. Na verdade, não se trata exatamente de uma questão de querer mudar, "eu quero mudar", mas de uma questão de querer lutar para mudar. De ter peito para ir em frente na mudança. Para arriscar-se diante da situação.
O verdadeiro herói é o que não só quer mudar, como quer lutar em prol da mudança. O verdadeiro herói, se possível, arrisca sua própria vida em favor da causa, por ele, defendida.
A moda agora é ambientalismo, desenvolvimento sustentável, coisa e tal. Desde que pesquisadores do mundo inteiro começaram a alertar da atual situação, empresas e mais empresas afirmam que tão plantando aos montes, realizando projetos e mais projetos na amazônia, etc. Mas parece que elas gastam muito mais divulgando, às nove na televisão, que tão fazendo isso , do que de fato com o que está sendo divulgado. Gastam mais dizendo que são ambientalistas do que sendo ambientalistas.
Procuro não somente por uma pessoa que não destrua, como seja aquela que vá construir. Que vai pensar, não somente em si. Que vai estar já, indignada, com a situação ao ponto de ter raiva de pertencer a ela.
Quero um herói que tenha ímpeto, iniciativa. Um líder. Alguém que lute pela liberdade. Liberdade esta que não temos. Nós somos exatamente o que eles querem que sejamos. Escravidão disfarçada. Você não é livre.
"O pior escravo é aquele que pensa que é livre"
Mas qual é o melhor jeito de mudar? Colocam na sua cabeça que o único jeito de mudar é votando. "Depois, cumpra com seu papel de fiscalizar". Votar e Fiscalizar é os cambal. Essa é a democracia deles?
Parece até que ninguém percebe que a televisão é um grande meio de manipulação. Passa boa parte do tempo te divertindo com um entretenimento barato, para você não ter tempo de pensar, de contestar.
"A programação existe pra manter você na frente
Na frente da TV, que é pra te entreter
Que pra você não ver que programado é você"
Procuro por um Gandhi em cada esquina. Que seja um verdadeiro herói, pronto para lutar. Não alguém que vá pegar em armas, essa luta só gera mais e mais violência. Alguém que saiba lutar com a mente.
Este, é claro, não sou eu. Eu não tenho peito para lutar. Mas eu continuo à procura desses heróis. E, sinceramente, espero que esse texto tenha colaborado para a mudança.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Abrir os olhos


Conhecer isso tudo aqui foi sempre um sonho meu. Preferi vir a pé, para notar melhor os lugares por quais vou passar. Aqui de baixo, eu não consigo ver onde isso termina, parece outra cidade, sendo esta, muito menos maquiada, menos fantasiosa e mais real. Não é bem o que queremos ver, mas é o que existe.

Então começo a andar. Agora no começo, noto que as ruas ainda são asfaltadas, ainda têm postes de iluminação pública, e o movimento de pessoas é bem maior. Ônibus, motos, e poucos carros ainda circulam por aqui. Entre a rua e a calçada forma-se um córrego com aquela lama meio acinzentada.

O sol é quente e forte. Não dá trégua alguma, as gotas de suor já descem em meu rosto. Um senhor, com uns 65 anos, passa ao meu lado carregando na cabeça um amontoado de papelão, um sobre o outro, amarrados com duas cordas que se cruzam no topo e no fundo do monte. Duas belas negras passam também por mim, mostrando seus cabelos, com penteados exuberantes.

Mais a frente, um pai briga com seus quatro filhos, que parecem ter feito algo muito errado. O mais velho dos filhos é o mais reprimido. O filho caçula não tem o que vestir, está nu. O pai barbudo aponta o dedo sujo na cara de cada um deles e grita sem parar.

Mais alguém assiste a toda esta cena, é uma senhora no portão de sua casa.

Agora, vem uma dona de casa, de mãos dadas ao seu filho. Ela anda pela beira da rua, e seu filho alterna-se entre a rua e a calçada, brincando de pular pra lá e pra cá, por cima do córrego. Ali no final daquele beco, em um tanque de lavar roupas, duas garotas, com uns 12 anos, tomam banho e jogam água, uma na outra. Cães e mais cães cruzam a rua de um lado para o outro, reviram o lixo, latem para o nada e vivem em meio à desordem contínua deste local. Um moço de sorriso simpático ajuda seu filho a colocar a pipa no céu para disputar com tantas outras que lá estão. Quando isso é feito, ele bate nas costas do filho, em um gesto de incentivo, e volta a vender seu milho cozido.

O pessoal da capoeira sobe a ladeira e formam a roda lá no alto. Ao som do berimbau, todos observam o mestre Aloísio com as mãos no chão e os pés para o alto, fazendo uma série de movimentos. A empolgação do mestre é acompanhada de palmas no ritmo da dança.

O pião não cansa de rodar na mão do garoto de azul, que se exibe para os amigos. Então, já um pouco cansado, sento-me à mesa do botequim para descansar as pernas. Peço uma água. O sol, aos poucos, vai caindo e um grupo de jovens, trazendo pandeiros; passam a ser responsáveis pela baderna do fim de tarde. Belas mulheres juntam-se aos jovens e passam a dançar ao som dos pandeiros.

Adultos jogam cartas na mesa aqui ao lado. Bebem e gritam, espantando os clientes. Um deles, já alterado com a bebida, puxa briga por conta de uma aposta feita no jogo. O outro, também já não tão sóbrio, quebra uma garrafa, fazendo dela uma arma. A briga começa, e em poucos segundos, um deles cai com uma garrafa enfiada no pescoço. O sangue se espalha pelo chão. Ninguém toma nenhuma atitude. O vencedor solta a garrafa no chão, e sai andando do bar.

Algum tempo depois, a polícia chega ao local. Mas ninguém sabe de nada, ninguém viu nada. Aos poucos, todos vão se recolhendo. Chegou também a minha hora de ir. Levanto da mesa, pago minha água e vou voltando para casa, espantado, indignado, porém, satisfeito. No fundo, foi esse tipo de coisa que eu vim para ver. Está ao nosso redor, pena que alguns preferem, simplesmente, fechar os olhos.