segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Memorial


Sem dúvida, os melhores momentos que eu passei ao seu lado foram na praia de Morro Branco, onde tínhamos uma casa. A casa era o divertimento de grande parte da família. Os finais de semana e feriados normalmente eram lá. Toda manhã íamos à praia, ele brincava com seus netos na própria areia. Ele adorava deitar lá. Agradeço por ter tido o privilégio de ter sido um desses netos. Nos cafés das manhãs ele satisfazia a vontade dos netos, sempre tínhamos tudo que queríamos. Suco, queijo, pão e tudo que fosse necessário ele mandava preparar. Quando chegávamos da praia, ele mandava por na mesa um bom peixe frito. Cuscuz de milho, inhame e jerimum estavam entre seus pratos prediletos, além do famoso bacalhau feito por minha avó. Toda a família gostava.
Os dominós tomavam conta das noites, acompanhados de cerveja e tira-gosto. Cartas de baralho não ficavam de lado, sendo ele um mestre nas duas atividades.
Era um homem de diversas virtudes. Confesso que ele tinha um certo caráter rude e conhecimentos limitados. Mas a experiência vital lhe tornava um sábio. Tinha uma enorme autoridade familiar, ganhou o apelido de “chefe”. E de fato era um, mandava e desmandava em toda casa. Na cozinha, ele freqüentemente trocava patadas com minha avó. Quando ele estava lá, os dois não sossegavam.
Em certa época de minha vida, ele me ligava todo dia, só para me acordar. O despertador inútil não conseguia fazer isso com eficiência. Já o telefone era bem mais alto e servia bem para a função. Como ele acordava cedo, não se incomodava de me ligar. Na primeira semana, ainda trocava algumas palavras com ele, mas depois disso, o diálogo passou a ser quase sempre o mesmo:
- Opa, obrigado vô, tchau.
- Por nada meu filho, boa aula. Tchau.
Por mais banal que esse diálogo possa parecer, era bom porque me sentia mais próximo dele.
Ele adorava festas e encontros familiares, exagerava um pouco no álcool. Teve um sério problema com a bebida, o qual viria a parar mais tarde. Era um homem alto, presença forte, eu o conheci de cabelos brancos, tinha também olhos azuis e uma gargalhada sem igual. Seu humor contagiava a todos, era de fato um homem feliz. Sempre que eu chegava em sua casa, não conseguia fazer outra coisa antes de falar com ele e com minha avó. Com certeza, os dois tiveram parte em minha educação.
Poucos anos depois de vender a casa de praia, vieram crises de saúde, principalmente, em virtude da bebida. Seu fígado foi atingido. Em um intervalo entre essas crises, comemoram-se bodas de ouro do casamento entre ele e minha avó. Pouquíssimo tempo depois caiu em outra crise, quando não estava em hospital, ficava todo o seu tempo na cama de casa.
Com a ajuda da fisioterapia, para nossa surpresa, ele voltou a andar. Sinal de que não desistiu fácil. Nessa época, ele fazia bicicleta assistindo televisão, estava em ótima forma. Eu realmente acreditei que tudo tivesse passado.
Mas pouco depois, ele voltou a piorar, seu quarto já era um pequeno hospital improvisado. Além da cama especial, viam-se aparelhos de respiração e itens hospitalares. Tudo foi piorando, depois de um tempo, nem sequer ligava a televisão. Nas ultimas semanas, não sorria e falava apenas o necessário. Sempre que eu entrava naquele quarto, sentia um cheiro frio de tristeza, que provocava ardor no peito. O olhar antes feliz e contagiante era agora completamente vazio e sem sentimento.
Uns três dias antes de partir, ele teve um mal estar forte, foi ao hospital, mas logo voltou, não havia nada a se fazer. Conta-se que na madrugada do dia final, ele passava muito mal e gritava sem parar. Ao dia, já mais calmo, com certeza ele sabia que não ia passar dali. Avisou com um certa antecedência e esperou uma última pessoa. Deu o último suspiro e morreu aos braços de sua filha.
Recebi a notícia por telefone. Tranquei-me no banheiro e entrei debaixo d'água. Junto a água que escorria pelo meu rosto, desceram duas ou três lágrimas, apenas. Não consegui chorar mais que aquilo. As reflexões eram tantas, que parecia que ainda não tinha “caído a ficha”. Fui chorar mais no velório e mais ainda no enterro no momento em que o caixão descia.
A dor maior era saber que eu nunca mais o veria.
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Nota do autor.
(Que fique claro que minha intenção nesse texto nunca foi que ele fosse triste, ou qualquer outra coisa que ele possa parecer. Esse texto é completamente real e freqüentemente atualizado, sempre que lembro de algum fato antigo, ou alguma coisa importante que lembre meu avô. Basta que essa coisa ainda não tenha sido escrita aqui. Faço isso pelo simples fato de não querer perder minhas lembranças.
E eu não quero que minha visão dele seja sempre cada vez menor. Não quero ser um adulto que não lembre o suficiente das pessoas que marcaram minha vida. E essas são, definitivamente, memórias que eu não quero perder.)


A primeira versão do texto foi escrita na madrugada de uma terça-feira, 7 de outubro de 2008 – 12:49 am.

4 comentários:

  1. Flávia ... diz:
    eu n sei mt o que comentar
    Flávia ... diz:
    só vou conseguir dizer que está muito bom e que eu gostei muito, muito mesmo.



    é isso lucas,

    =***

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  2. c sabe que me fez chorar com esse texto né?
    perfeito. ;x

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  3. geeente, o texto tá muito bom mesmo..

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  4. Rapaz, q massa! Vc me surpreende viu, xupinha!
    Além de o texto está muito bem escrito, vc fala muito bem a respeito de algo que é tão difícil de encarar: a morte. Encarar é difícil, imagine refletir sobre e ainda escrever sobre? Não vou comentar todas as minhas impressões pq não caberão aqui! Em síntese, parabéns pelo texto e, sério mesmo, vc me surpreende.

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